Memorização, por Elodie Bouny

Olá, prezados leitores,

hoje apresentamos um texto que aborda tema importantíssimo para os músicos, em uma pesquisa que traz interessantes depoimentos de grandes músicos

Espero que apreciem!

MEMORIZAÇÃO

 

A memória é um tema complexo e a memória musical, mais ainda, porque envolve elementos variados e imbricados. O neurocientista Jean Vion-Dury (2007) explica:

 

A música, como a dança, convoca a memória em cada instante e de várias maneiras. Assim, a música precisa de vários níveis de memória simultaneamente ativos: memória da nota anterior (marcha melódica e harmônica), memória da nota sobreposta (harmonia, marcha harmônica, fissão melódica, fusão harmônica), memória das notas anteriores (a célula, o tema, os ritmos), memória das harmonias e ritmos anteriores (variações), memória dos motivos (temas, retórica), memória do agenciamento (repetições, reiterações, temas variados, forma), memória das formas estéticas (sonata, fuga), memória da história ou da gênese da obra. A superposição dessas memórias dissuade toda tentativa de posicionar um cursor entre memória a longa prazo e memória a curto prazo. A música nos mostra também permanentemente como a música está ligada à noção de familiaridade[1] (VION-DURY, 2007, p. 10).

 

Essa breve descrição já deixa entrever a complexidade infinita da memória musical, que parece ser uma rede envolvendo elementos variados que se complementam para poder retribuir a informação necessária no momento certo.

Sobre esse tema, Gérard Abiton (2011), numa entrevista concedida à pesquisadora, afirma:

 

Não somente uma memória, mas várias entram em jogo no meu processo de memorização: a memória aural que é o ritmo horizontal e vertical assim como as alturas dos sons; a memória digital, que é a memória interior dos gestos; a memória visual, em outras palavras, a interpretação. É evidente que dependendo da música interpretada, tal ou tal memória será mais utilizada do que outra. Penso, por exemplo, que há partituras de música contemporânea, em que o ritmo tem um papel preponderante. Parece-me essencial entender bem a partitura no seu aspecto polifônico, sobretudo a duração das vozes internas e do baixo, porque isso implica ou obriga a usar um dedilhado específico. […] Geralmente, o ouvido se foca na parte superior, e não é uma má ideia tocar a peça ressaltando as vozes internas e os baixos. Pessoalmente, a minha memória digital está totalmente ligada à memória visual. Por exemplo, se eu começo a por os dedos no braço do violão, automaticamente, vejo as notas na partitura.

Mas o mais importante de tudo é o significado musical do que a gente toca. A memória realmente será eficaz se interpretarmos. O quanto mais a frase for interpretada, o caráter, a direção dinâmica, a articulação, o timbre, entre outros, mais a integração na memória será durável (ABITON, 2011, tradução nossa).[2]

Zé Paulo Becker (2011), músico erudito, aprendeu a música popular somente depois dos 25 anos. Em uma entrevista concedida à pesquisadora, faz o seguinte comentário:

 

Toda música que eu tirei de ouvido guardei muito mais do que música que eu li. Você aprende de outra maneira, você entende harmonia… Agora por exemplo, estou tendo que estudar e memorizar música escrita… mas, de repente, eu tenho um insight popular naquela passagem, entendo a modulação, a harmonia, eu já sinto que estou aprendendo a música de outra maneira… de uma maneira mais sólida (BECKER, 2011). [3]

 

Observa-se que a memorização parece ter uma ligação com o entendimento harmônico da peça, ferramenta muito mais utilizada pelo músico popular do que pelo músico erudito. Yamandu Costa (2012) parece concordar com isso quando afirma, em uma entrevista concedida à pesquisadora:

 

Normalmente, como a minha formação é popular, um dos grandes estudos que eu sempre tive foi tirar música de ouvido, como é normal dentro da escola popular. Então, você desenvolve uma maneira de escutar aquilo e tentar reproduzir, ao mesmo tempo que você começa a aperfeiçoar o seu conhecimento harmônico, rapidamente, você começa a ver que o quebra-cabeça harmônico é mais simples do que parece. […] E aí tem duas maneiras de se lembrar da música: ou é pela parte harmônica, ou é pela parte digital. Essas duas partes são bem importantes para decorar no sistema popular. […] Se for uma música mais popular, e se for uma música dentro da linguagem que a gente está acostumado, um choro, uma valsa, uma coisa mais simples, que seja uma melodia mais corriqueira, aprendo super-rápido, em duas ou três vezes já se aprende a música. Quando é uma música de violão difícil de se aprender, tipo um choro de João Pernambuco, ai eu decoro e normalmente eu não esqueço mais, muito difícil eu esquecer. Quando é uma música para você tocar uma vez ou duas vezes, você esquece, porque não há repetição daquilo, e normalmente não é uma coisa muito difícil. É só uma digitação, que você lembra para conseguir tocar isso uma ou duas vezes.  E agora quando tem a partitura junto, quando me mandam a partitura junto com o áudio, aí eu não decoro absolutamente nada. Quando é lendo, não decoro nada, toco num show e numa noite já esqueci. […] O músico popular tem uma coisa que é tocar cantando; as improvisações são uma extensão do canto. Então isso traz a memória do primeiro instrumento, que é a voz. Acho que isso é a diferença básica entre o músico popular e o músico erudito. Você vê que normalmente todos os músicos populares sabem cantar. Não são cantores, talvez porque não têm uma voz tão bonita, mas normalmente eles sabem cantar porque eles usaram ela para se comunicar com o instrumento e, a partir de um determinado tempo, a voz deles começa a ser o instrumento (COSTA, 2012).[4]

 

Esse comentário mostra bem a complexidade da memória. Não é somente uma memória, mas várias que são solicitadas de maneira diferente segundo o contexto. Do mesmo modo, Hamilton de Holanda (2012) lembra muito melhor da música que foi tirada de ouvido do que a que foi aprendida por partitura:

 

Se eu aprendo de ouvido, a música fica para sempre na memória. Se aprendo com a partitura, como envolve memória visual, eu já não lembro tão bem. Quando aprendo com a partitura, preciso tocar muito mais vezes para lembrar do que sem a partitura (HOLANDA, 2012).

 

Pablo Márquez (2011), em entrevista, comenta:

 

Não acho que a memória seja só um processo neuronal. Acho que está mais ligada ao afeto do que a qualquer outra coisa. Em outras palavras, eu não memorizo, eu só me lembro das coisas, e isso está totalmente ligado ao afetivo. Mas a memória é um fenômeno muito complexo, tem a memória analítica, quando você analisa a forma e quando você entende a forma de uma música, você entende a dramaturgia interna dela, porque, para mim, a forma é como uma dramaturgia. Um exemplo típico é a forma sonata, é uma dramaturgia musical. E isso já implica uma ligação emocional, não é intelectual. Quando você vai tocar uma zamba [música tradicional da Argentina], é igual, é o desdobramento da forma, carregado de um conteúdo emocional. Isso está ligado a muita coisa e acho que é por isso que a gente lembra, e não por uma memorização mecânica (MÁRQUEZ, 2011, tradução nossa).[5]

Para este entrevistado, a memória não está ligada somente à estrutura, à digitação, à harmonia, à melodia, entre outros, mas à emoção, uma parte da memória que não está ligada ao intelectual e também entraria em jogo no momento de nos lembrarmos de uma música.

Rogério Caetano (2011), em entrevista, afirma não fazer uso de nenhum outro recurso além da sua própria memória para guardar as suas composições, nem por escrito, nem mesmo gravando-as. E acrescenta: “Não esqueço, de jeito nenhum”. Esse comentário deixa imaginar a quantidade de música que o entrevistado Caetano tem memorizado.

Marco Pereira (2011), por sua vez, em relação à sua maneira de memorizar, afirma:

 

Eu sempre tive o seguinte: memorizo rápido e esqueço com a mesma velocidade. Preciso estar sempre mantendo, lembrando. Tenho várias coisas que me ajudam, uso as escalas, a harmonia, a forma da música, as armações, muitas vezes, você sabe as notas, mas o que vale mesmo é a sua memória mecânica, a mão que vai. Então utilizo tudo isso junto (PEREIRA, 2011).

 

Para Sérgio Assad (2011), violonista que teve uma dupla formação, popular, enquanto criança, e erudita, a partir da adolescência, a memorização funciona da seguinte forma:

 

Embora haja maneiras diferentes de se memorizar, eu creio que todas se resumem em repetir, repetir e repetir. A minha memória é bastante auditiva e após algumas repetições eu acabo retendo na memória as sequências sonoras. O curioso é que eu retenho mais as vozes das pontas do que as vozes interiores. Nunca me esqueço de uma sequência melódica ou harmônica depois de aprendê-la, mas posso me confundir com o que se passa entre a melodia e o baixo por exemplo se deixar de tocar uma peça por algum tempo (ASSAD, 2011).

 

Fábio Zanon (2012), por sua vez, descreve seu sistema de memorização desta forma:

 

Certamente eu nunca tive uma facilidade inata, incomum para memorizar as coisas. Quando era criança eu decorava, ficava estudando e não me preocupava para decorar, isso acabava acontecendo. Ela aparecia de cor um belo dia. E isso acontece com todas as músicas que eu estudei muito, agora se eu for te falar as músicas que eu tenho mais certeza, que eu não toco há vinte anos, mas eu sei que eu sento e toco, são as peças com as quais eu perdi mais tempo estudando. Eu não tenho falha no concerto de Villa Lobos, os prelúdios de Villa Lobos, eu não vacilo para tocar o Concerto de Aranjuez, enfim, eu não penso para tocar, porque o dedo já conhece o caminho. É um trajeto que você faz desde criança, e não tem como errar. Agora, semana passada estava aprendendo uma fantasia de Mudarra, que não é uma coisa fácil de aprender, eu levei um dia para memorizar, fiquei uma semana sem tocar, e agora não toco mais de cor. Você leva para memorizar mais ou menos o tempo que você leva para esquecer. Leva para uma semana para aprender, você leva uma semana para esquecer… Os músicos populares não se fixam tanto nas notas, na textura, na minúcia, eles memorizam blocos maiores imagino, a gente memoriza as notas, os valores, eles memorizam uma estrutura. Eles sabem a harmonia toda da peça, então fica muito mais aberto (ZANON, 2012).

 

Segundo este entrevistado, o fato de a música ser mais aberta e lembrada pela harmonia, como o é para o violonista de formação popular, e não ser fixa, com diversas vozes internas, como acontece na música escrita, é essencial na lembrança da música de uma maneira mais fiável e duradoura. Observa-se, também, que a memorização é o resultado de uma rede complexa, envolvendo vários tipos de memórias diferentes e a emoção.

Cada músico tem que achar seu jeito de memorizar melhor a música, pois eles não têm a mesma técnica, e as diferenças entre o violonista de formação popular e o de formação erudita parecem ser notáveis nesse aspecto. O violonista de formação erudita tem uma memória visual da partitura muito mais desenvolvida, ao passo que o violonista de formação popular tem uma memória harmônica e auditiva mais presente. E, para este último, a partitura não parece ser uma aliada muito boa neste aspecto, como ilustra a frase de Costa (2012): “…quando me mandam a partitura junto com o áudio, aí eu não decoro absolutamente nada. Quando é lendo, não decoro nada, toco num show e numa noite já esqueci”; ou esta frase de Holanda (2012): “Se eu aprendo de ouvido, a música fica para sempre na memória. Se aprendo com a partitura, como envolve memória visual, eu já não lembro tão bem”.

Os violonistas de formação popular têm uma memória mais duradoura e mais fiável quando a partitura não é usada para aprender a música, como demonstram as seguintes afirmações: (a) “mas de repente eu tenho um insight popular naquela passagem, entendo a modulação, a harmonia, eu já sinto que estou aprendendo a música de outra maneira… de uma maneira mais sólida” (BECKER, 2011); (b) “Não esqueço, de jeito nenhum” (CAETANO, 2011); (c) “Nunca me esqueço de uma sequência melódica ou harmônica depois de aprendê-la” (ASSAD, 2011).

Já o violonista de formação erudita ou mista parece ser mais vulnerável em relação à memória: “Eu sempre tive o seguinte: memorizo rápido, e esqueço com mesma velocidade. Preciso estar sempre mantendo, lembrando” (PEREIRA, 2011). O comentário de Zanon (2012) ratifica essa ideia:

 

Agora, semana passada estava aprendendo uma fantasia de Mudarra, que não é uma coisa fácil de aprender, eu levei um dia para memorizar, fiquei uma semana sem tocar, e agora não toco mais de cor. Você leva para memorizar mais ou menos o tempo que você leva para esquecer. Leva para uma semana para aprender, você leva uma semana para esquecer…Os músicos populares não se fixam tanto nas notas, na textura, na minúcia, eles memorizam blocos maiores imagino, a gente memoriza as notas, os valores, eles memorizam uma estrutura. Eles sabem a harmonia toda da peça, então fica muito mais aberto (ZANON, 2012).

 

Zanon (2012) lembra que os violonistas de formação popular reconhecem a harmonia daquilo que estão tocando enquanto tocam. Enfim, é mais fácil se lembrar de algo que é entendido totalmente do que se lembrar das notas e posições, sem ter um entendimento da harmonia que elas estão formando.

As diferenças de memorização entre o violonista de formação erudita e o de formação popular parecem ter ligação com dois elementos: (a) a falta de entendimento harmônico do violonista erudito, que parece ser uma ferramenta importante no processo da memorização; e (b) o fato de que a música escrita é mais desafiadora para a memória do que o formato melodia/cifra, que é muito mais aberto.

 

 


[1] “La musique, comme la danse, convoque la mémoire en chaque instant, et de multiples manières. […], la musique nécessite plusieurs niveaux (plans) de mémoire simultanément actifs : mémoire de la note précédente (marche mélodique et harmonique), mémoire de la note superposée (harmonie, marche harmonique, fission mélodique, fusion harmonique), mémoire des notes précédentes (la cellule, le thème, les rythmes), mémoire des harmonies et rythmes antérieurs (variations), mémoire des motifs (thèmes, rhétorique), mémoire de l’agencement (redites, répétitions, thèmes variés, forme), mémoire des formes esthétiques (sonate , fugue), mémoire de l’histoire ou la genèse de l’œuvre. La superposition (le feuilletage) de ces mémoires décourage toute tentative de positionner un curseur entre mémoire à long terme et mémoire à court terme. La musique nous montre aussi en permanence comment à la mémoire est alors liée la notion de familiarité.”

 

[2] “Il n’y a pas une seule mémoire, mais plusieurs entrent en jeu dans mes procédés de mémorisation : la mémoire auditive, qui concerne le rythme horizontal et verticale ainsi que la hauteur des sons, la mémoire digitale, qui est la mémoire intérieure des gestes, la mémoire visuelle ou photographique de la partition, la mémoire musicale autrement dit, l’interprétation. Il est bien évident que suivant la musique que l’on joue, tel ou tel type de mémoire sera plus employé qu’un autre, je pense par exemple à certaines partitions de musique contemporaine où le rythme joue un rôle prépondérant. Il me paraît essentiel de bien comprendre la partition dans son aspect polyphonique, surtout les durées des voix intérieures et de la basse, parce que cela implique ou oblige un doigté particulier.[…] Généralement l’oreille se focalise sur la partie supérieure et ce n’est pas une mauvaise idée que de jouer la partition en faisant ressortir les voix intermédiaires et la basse.

Personnellement ma mémoire digitale est intimement liée à ma mémoire visuelle, par exemple si je je pose quelques doigts sur le manche, automatiquement je vois les notes concernées sur la portée.

Plus encore que tout cela le plus important est la signification musicale de ce que l’on joue. La mémorisation sera réellement efficace que si l’on interprète; en effet, plus il y aura de choses à faire sur une phrase musicale (caractère, direction dynamique, articulation, timbre etc..), plus l’intégration mémorielle se fera durablement.”

 

[3] Informação obtida por entrevista, em 15 de mar. de 2011, do Sr. José Paulo Becker, violonista e compositor, em Rio de Janeiro.

[4] Informação obtida por entrevista, em 23 de nov. de 2012, do Sr. Yamandú Costa, violonista e compositor, em Rio de Janeiro.

 

[5] “Je ne pense pas que la mémoire musicale soit franchement une mémoire neuronale, enfin en partie, mais pour moi ça passe vraiment par l’affectif. C’est a dire, je ne mémorise pas, mais je me souviens des choses, et ça a un lien avec l’affectif. Mais la mémoire c’est un phénomène très complexe, tu as la mémoire analytique, lorsque tu comprends la forme, tu comprends la dramaturgie interne d’une pièce, parce que pour moi la forme c’est une sorte de dramaturgie. L’exemple type, c’est la forme sonate, c’est une dramaturgie mise en musique. Ca, ça implique déjà un lien avec l’émotionnel, ce n’est pas d’ordre intellectuel, c’est ce que provoque en toi cet état des choses. Quand tu joues une zamba, c’est pareil, c’est le déploiement d’une forme, chargé d’un contenu émotionnel, c’est lié a tout un tas de choses, et je pense que c’est ça qui fait que tu te souvienne, et pas la mémorisation mécanique.” Informação obtida por entrevista, em 2 de fev. de 2011, do Sr. Pablo Márquez, violonista e professor, em Paris.

2 Comments

  1. Steven
    11 de março de 2019

    Hi there! Such a wonderful write-up, thanks!

    Responder
  2. Waldinar
    11 de maio de 2019

    Gostei do texto

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