Olá, amigos da Camerata de Violões!
Hoje apresentamos a todos um texto de nosso colega e ex-integrante, Gaetano Galifi, sobre a sua peça “Canuã – A Lenda de um Guerreiro”, que está gravada em nosso terceiro CD, “Suítes do Brasil”. Conhecer o caminho que o compositor trilhou até a conclusão da obra, com suas inspirações e decisões para uma tentativa abstrata de representatividade sonora, pode ajudar a compreender a música, tanto para escutá-la quanto para tocá-la. Vamos então conhecer um pouco mais da peça, nas palavras do compositor:
A proposta estilística da Camerata de Violões foi, desde a sua formação, ter um repertório exclusivamente constituído de música brasileira. Eu, como compositor, assumi também essa postura e me dediquei a compor obras para a Camerata com temas e estética brasileira. Após compor “Ares Nordestinos” e a “Suíte Típica Brasileira”, que foram gravadas, respectivamente, no 1º e 2º CDs, fiquei com vontade de compor uma obra mais audaciosa, algo nos moldes dos grandes compositores brasileiros, como: Villa-Lobos, Lorenzo Fernandez, Mignone, etc. Primeiramente decidi que devia ser um poema sinfônico, algo com características orquestrais.
A seguir, veio a preocupação com o tema. Eu já havia composto dois “poemas violonísticos” para violão solo: “Amazonas” e “A Caçadora de Esmeraldas”; achei então que poderia me inspirar em alguma lenda brasileira. As lendas dos índios brasileiros sempre exerceram em mim um fascínio muito grande, considero-as muito interessantes, criativas e de grande beleza poética. Nessa época (o ano era 2005) estava cursando a graduação em violão e uma das matérias, “Cultura Popular Brasileira”, tornou-se logo uma das minhas favoritas, especialmente quando a professora Adriana Rodrigues nos apresentou várias gravações feitas em tribos brasileiras. Fiquei encantado com a beleza e musicalidade dos cantos e ritmos indígenas, além das sonoridades fora do comum tiradas dos seus instrumentos.
A Lenda de Canuã não é original. Foi inventada por mim a partir da leitura de tantas lendas, que um “arquivo” formou-se no meu cérebro e daí, baseado no mito do herói, tão difundido entre os povos primitivos, metade deus e metade humano, veio à tona a minha obra “Canuã, a lenda de um guerreiro”.
A LENDA
A tribo dos Tucurubins é formada por gente pacífica e tranquila, que vive da agricultura e da pesca. A tranquilidade da tribo foi interrompida quando, ao saber da sua existência, um bando de índios andarilhos e belicosos começou a saquear a tribo dos Tucurubins, saques esses que forma se tornando cada vez mais frequentes, inclusive passando a raptar as mulheres da tribo.
Sem saber mais o que fazer, os Tucurubins, desesperados, pediram ajuda aos deuses; esses, apiedados da situação e simpatizantes da bondade e reverência dos índios que sempre faziam oferendas aos deuses, resolvem ajuda-los enviando Canuã, um guerreiro que foi concebido pela índia Sibilene, a virgem mais formosa da tribo.
Canuã cresceu rapidamente, tornando-se um grande guerreiro; em seguida, os espíritos prepararam Canuã para ele ter poderes especiais, como a capacidade de se transformar em qualquer coisa: pedra, água, árvore ou animal, e ainda da capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Assim sendo, Canuã destrói o bando de inimigos e traz de volta a paz à tribo Tucurubim.
Hoje em dia, quando um vento estranho sopra na floresta, os Tucurubins fazem uma reverência ao seu salvador Canuã, que, sabem, estará velando sempre por eles.
A OBRA
I – Os deuses enviam Canuã
O primeiro movimento, com seus acordes “indígenas” do violão II, fazem uma base para a entrada sinfônica das cordas sibilantes do violão I, seguidas pelas melodias cada vez mais sonoras e graves dos violões III e IV, até que, num crescendo e stringendo orquestral, a música se abre para os largos acordes do violão I até o máximo da região aguda e, com um ritmo característico “indígena”, aparece uma melodia no violão II que é seguido por outra melodia “trombonística” do violão III, respondida celestialmente pelas “flautas” do violão II. Tendo como base os harpejos do violão I, os demais violões executam uma melodia em contraponto culminante nos sons agudos e “perdendo-se”…
II- Canuã torna-se guerreiro
O ritmo rasgueado executado no braço do violão antes da pestana pelo violão IV, dá uma sensação de instrumentos indígenas de percussão e antecedem a vigorosa entrada do violão I num “riff”, com utilização de uníssonos em cordas soltas e depois passa para uma melodia com polegar na 2ª corda, tendo como “pedal” a 1ª corda solta. Segue um pouco mais leve e alegre com melodias entrelaçadas dos violões I e II, deixando transparecer a voz inferior do violão III, que culmina com um refrão muito lírico, acompanhado pelo trêmolo dos violões I e II. Harpejos em crescendo do violão IV levam a um trio triunfal de sopros (metais) dos demais violões culminam em uma frase vigorosa e rápida com acorde final na região aguda.
III – Os espíritos preparam Canuã
Este movimento místico se inicia com harmônicos que soam como estrelas que vão se adensando até darem a passagem ao solo lânguido do violão I, que passeia por todo o braço do violão em uma melodia em “baixo cantabile” entremeada de cordas soltas, formando suavez dissonâncias; o final do solo se transforma aos poucos em acompanhamento harpejado para a lírica melodia do violão II, que por sua vez é seguida pela tranquila e espiritual melodia do violão IV. Uma ponte de acordes faz a passagem para o coral “operístico” que assinala o canto final dos espíritos na preparação de Canuã. Então, após uma entrada em baixos com uníssonos e cordas soltas do violão IV, há uma seção de alegria e tudo volta à calma inicial com uma pequena “lembrança” do tema solista e, finalmente, os harmônicos fecham o movimento com uma tranquilidade espiritual.
IV – Canuã liberta seu povo
Esse último movimento é o mais rico em efeitos sonoros. O violão IV começa percutindo a 6ª corda com duas técnicas diferentes dando a sensação de pergunta e resposta. Em seguida, o violão III, com outro tipo de técnica de percussão melódica, segue a sequência de efeitos; a continuação usa uma percussão mais leve do violão II, com rasgueos percussivos e, finalmente, o efeito de “pequena flauta” do violão I completa o quarteto. Uma percussão mais sonora dos violões III e IV, com golpes nas cordas e na ponte do violão, criam um clima tenso para a entrada do sujeito do tema da fuga do violão I, entra a seguir o violão II uma 4ª abaixo, enquanto o violão I toca o contra-sujeito; o violão III entra na mesma tonalidade do violão I, porém com o contra-sujeito um pouco variado e o violão IV na 4ª abaixo completa a apresentação da fuga. Segue um episódio de rápidas figurações, contrastando com o canto grave e espaçado do violão IV e cada vez mais tudo se torna mais tenso, conduzindo à preparação do conflito. Os violões III e IV voltam a fazer efeitos percussivos em ritmos “indígenas” como base para a melodia “épica” do violão I. O acompanhamento do violão II soa como um chicote que complementa a percussão. A idéia musical do chicote passa agora para o violão I, que sobe até a região mais aguda e cai em forma de cascata até o acorde, que anuncia a volta da fuga, desta vez em “stretto”, com a entrada mais imediata de cada violão em sequência, ao qual segue um novo episódio. Melodias com acentuações deslocadas e compassos alternados, além dos efeitos percussivos de sonoridades leves, médias e graves, criam uma tensão extrema, levando ao desenlace final, onde são improvisados, nos violões, sons “caóticos e selvagens”, seguidos de batidas desencontradas propositadamente (para dar a sensação de batalha), utilizando clusters, pizzicato bartokiano, glissando, etc. e, finalmente, batidas “in tempo” e afrouxando o andamento, dando a sensação de final de batalha. Uma melodia “épica” retrata a vitória de Canuã sobre os inimigos dos Tucurubins e finaliza com um imenso rasgueado, sugerindo um final orquestral.